O Decreto 2172/97 remete à NR15 e, por isso, aplicamos o IBUTG, mas e antes do decreto? Entenda a base legal e a estratégia processual.

Tópicos
- Introdução
- A Base Legal para Períodos Anteriores a Março de 1997
- O Que Significa “TE acima de 28º” em 1964?
- A Estratégia da Hermenêutica Evolutiva: Argumentando pelo Uso do IBUTG
- Em Síntese para Períodos Anteriores a 06/03/1997
- Conclusão
Introdução
Prezados(as) colegas previdenciaristas,
Abordamos hoje um ponto desafiador na instrução de processos de aposentadoria especial por exposição a agentes nocivos: a comprovação do agente calor em períodos laborados antes da publicação do Decreto nº 2.172, de 6 de março de 1997.
Para os períodos posteriores a 06/03/1997, a base legal está no Decreto nº 2172/97 (posteriormente substituído pelo Decreto nº 3.048/99), cujo Anexo IV, item 2.0.4, prevê o enquadramento de trabalhos com exposição a calor acima dos limites de tolerância estabelecidos na NR-15, da Portaria nº 3.214/78. Isso nos remete diretamente ao uso do método IBUTG (Índice de Bulbo Úmido Termômetro de Globo) e aos limites definidos na NR-15, que passou por revisões ao longo do tempo.
Contudo, qual o regramento aplicável e a metodologia de prova para os períodos anteriores a essa data? É isso que vamos explorar com base nas fontes normativas e jurisprudenciais.
A Base Legal para Períodos Anteriores a Março de 1997
Conforme pacificado na jurisprudência, para os períodos laborados até 05 de março de 1997, o enquadramento da atividade especial por exposição ao calor ocorre nos termos do código 1.1.1 do Quadro Anexo do Decreto nº 53.831/64 e do Anexo I do Decreto nº 83.080/79.
Vejamos o que dizem esses anexos no que concerne ao calor:
- Decreto nº 53.831/64, Quadro Anexo:
“Jornada normal em locais com TE acima de 28º. Artigos 165, 187 e 234, da CLT. Portaria Ministerial 30 de 7-2-58 e 262, de 6-8-62.” - Decreto nº 83.080/79, Anexo: Este decreto lista algumas atividades que poderiam gerar enquadramento por exposição ao calor (como indústrias metalúrgica/mecânica, fabricação de vidros/cristais, alimentação de caldeiras a vapor). A leitura sugere que, para quem se enquadra nessas categorias, a exposição ao calor seria presumida, em tese, não necessitando comprovar o limite de 28ºC.
Portanto, o Decreto nº 53.831/64 estabelece explicitamente o limite de 28ºC para a “Temperatura Efetiva” (TE).
O Que Significa “TE acima de 28º” em 1964?
O Decreto nº 53.831/64 fala em “TE acima de 28º”, mas não remete à NR-15. A NR-15 e o método IBUTG só foram formalmente introduzidos no Brasil em 1978. Logo, seria anacrônico e impossível exigir a aplicação do método IBUTG para comprovar a exposição ao calor em 1964.
O próprio Quadro Anexo do Decreto nº 53.831/64, ao mencionar “TE acima de 28º”, remete expressamente ao Artigo 165 da CLT. O Artigo 165 da CLT, por sua vez, falava sobre a garantia de conforto térmico nos locais de trabalho. Ademais, estabelecendo uma faixa de conforto que, “em geral”, deveria ser inferior a 28ºC no verão e superior a 12ºC no inverno.
Logo, considerando o contexto da época (1964) e a referência ao Artigo 165 da CLT, que tratava de “índice de conforto térmico” em Graus Celsius, é evidente que o regulamento da previdência se referia à temperatura medida em Graus Celsius. Medir em Graus Celsius era um processo simples e direto com um termômetro comum, ao contrário do IBUTG, que exigia (e exige) a combinação de três medições e instrumentos específicos, algo inviável e incomum no Brasil da década de 1960.
A Estratégia da Hermenêutica Evolutiva: Argumentando pelo Uso do IBUTG
Embora a interpretação literal do Decreto nº 53.831/64 e da remissão à CLT aponte para a medição em Graus Celsius, há uma maior chance de comprovar a exposição do trabalhador à temperatura superior a 28ºC se utilizarmos o método IBUTG. Isso se deve ao fato de o IBUTG ser um índice mais completo, que considera não apenas a temperatura do ar, mas também a umidade e o calor radiante (de máquinas ou do sol), refletindo de forma mais precisa o estresse térmico sentido pelo corpo.
Diante dessa realidade, podemos propor e argumentar pela utilização do método IBUTG para a comprovação do calor mesmo para períodos anteriores ao Decreto nº 2172/97.
Esta estratégia se baseia no princípio da hermenêutica jurídica evolutiva.
A hermenêutica jurídica evolutiva permite que normas (incluindo as previdenciárias, que devem acompanhar a evolução das condições de trabalho e das técnicas de medição) sejam interpretadas considerando as mudanças sociais, tecnológicas e culturais. O objetivo é garantir a relevância e a eficácia da norma ao longo do tempo. Sendo assim, a adaptando sua aplicação a realidades não previstas em sua edição original, sem modificar seu conteúdo essencial.
Aplicação do princípio na Jurisprudência Brasileira
Vejamos exemplos da aplicação deste princípio na jurisprudência brasileira:
- O STJ, ao adaptar o Artigo 3º do CDC para incluir plataformas digitais como fornecedoras e estender a responsabilização por publicidade enganosa a influenciadores digitais.
- O STF aplicou a hermenêutica evolutiva para reconhecer a imunidade tributária do livro (Art. 150, VI, d, da CF/88) aos livros eletrônicos (e-books) e aos seus suportes (e-readers), mesmo que tais tecnologias não existissem na promulgação da Constituição. A tese firmada no RE 330817 (Tema 593) é clara: “A imunidade tributária constante do art. 150, VI, d, da CF/88 aplica-se ao livro eletrônico (e-book), inclusive aos suportes exclusivamente utilizados para fixá-lo.”
Aplicando este princípio, argumentamos que o termo “TE acima de 28º” do Decreto nº 53.831/64 deve ser interpretado à luz dos conhecimentos técnicos atuais sobre estresse térmico. O IBUTG, normatizado pela NR-15 e detalhado pela NHO-06 da FUNDACENTRO, é a metodologia cientificamente reconhecida para medir o estresse térmico. Portanto, seria uma interpretação evolutiva e mais justa utilizar o IBUTG para comprovar que o limite de 28ºC (entendido como um limiar de estresse térmico excessivo) foi efetivamente ultrapassado, mesmo que a norma original não previsse essa metodologia.
Em Síntese para Períodos Anteriores a 06/03/1997
- A base legal direta é o Decreto nº 53.831/64 (limite de 28ºC TE) e o Decreto nº 83.080/79 (lista de atividades).
- O termo “TE acima de 28º” no Decreto 53.831/64, referenciando o Art. 165 da CLT, indica que a intenção original era a medição em Graus Celsius.
- Contudo, o método IBUTG, embora posterior (NR-15, 1978), é tecnicamente superior para medir o estresse térmico.
- A estratégia jurídica é argumentar, com base na hermenêutica jurídica evolutiva, pela aplicação da metodologia IBUTG (NR-15 Anexo 3 da época, 1978 ou 1994, ou até mesmo as mais recentes NHO-06), para comprovar a efetiva exposição a um calor prejudicial acima do limite de 28ºC estabelecido na norma previdenciária da época.
- A prova dependerá, em grande parte, de perícia técnica judicial, que deve aplicar a metodologia IBUTG e justificar seu uso para o período anterior a 1997 com base na hermenêutica evolutiva [conclusão baseada na argumentação].
Conclusão
A ideia aqui não era de esgotar o assunto, mas apenas de tratar de um ponto específico e quase omisso na doutrina e na jurisprudência. Esperamos que esta análise auxilie os colegas previdenciaristas na defesa dos direitos dos segurados expostos a condições de calor extremo antes da vigência das regras mais claras que vieram com o Decreto nº 2172/97.
No entanto, caso tenha interesse em se aprofundar sobre o assunto, veja também Calor como agente especializante.